sexta-feira, 1 de junho de 2012

O Lado Ruim da Austrália


Pensei muito sobre se deveria escrever sobre este assunto, se deveria abordar tal tema de acordo com a minha experiência. Se uma experiência seria o suficiente para me dar base para tratar de um assunto tão delicado. Se duas experiências seriam suficientes, se três, e por isso fui protelando tocar neste assunto, na esperança de que eu estivesse errada, de que tudo não passasse de má sorte...

Mas depois de muitas experiências, acredito ter base suficiente para retratar a triste realidade do sistema de saúde australiano. Sempre considerei o blog como sendo de utilidade pública, ou seja, criei o blog com o intuito de ajudar as pessoas que estão vindo pra cá, ou almejam vir, ou mesmo que querem conhecer um pouco da vida fora do Brasil.

Corrijam-me se estiver errada, mas acredito que nunca falei mal da Austrália no blog. Eu amo viver aqui, como deve estar implícito ou explícito em todo o blog.

Mas, como para tudo se tem uma primeira vez na vida, vamos denunciar/elucidar/protestar/aflorar esse assunto tão importante.

Quando eu vim para cá eu não tinha a menor ideia que a parte da saúde deixaria tanto a desejar. Estou vivendo aqui a mais de dois anos e desde o início, eu já notei muita diferença com relação ao que estava acostumada (Brasil, Canadá, Alemanha).

Infelizmente tive que adquirir toda a informação do sistema por experiência pessoal (o que não desejo pra ninguém). Também não vou conseguir esgotar o assunto ou contar todas as experiências que tive aqui, senão um livro não seria suficiente.

Mas posso dar uma boa ideia da situação.

Primeiramente, para esclarecer um pouco o sistema, todo cidadão australiano ou residente permanente tem direito ao sistema de saúde publico australiano: o Medicare.

Esse sistema dá direito a todo o tratamento médico do paciente (tanto em hospital quanto fora dele), seria tipo um SUS melhorado. A diferença é que a pessoa pode ter despesas extras de acordo com o tratamento/consulta/hospital.

Até aí tudo bem, o sistema no papel, a princípio, não tem nada de ruim, e muitas vezes funciona bem. O problema maior diz respeito à competência médica, à acessibilidade a alguns serviços, à burocracia envolvida nos hospitais e à generalidade de como tudo é tratado.

Quando alguém fica doente na Austrália, se tem duas opções: ou se vai a um GP (clínico geral) ou se vai a um hospital (casos mais graves). Não existe ir a um especialista direto. É obrigatório passar por um GP primeiro para, se necessário, ser encaminhado (com uma cartinha explicando a situação) para um especialista.

Isso também seria ok, mas aí é que começa o problema.

Não existem médicos especialistas suficientes na Austrália. Simples assim.

Então o que acontece é que embora a pessoa esteja munida da cartinha de recomendação do GP (Referal), para se conseguir uma consulta com especialista aqui se leva uma eternidade. Na área de pediatria então (que é a minha maior base de conhecimento), é desesperador. Dependendo da especialidade, pode demorar mais de um ano, sendo que o normal é uma espera de seis meses!

Se o caso for mais grave, o jeito é ir para o hospital, e lá ter a esperança de ser internado para ser atendido por um especialista.

Aconteceu com a minha filha. 

O GP da minha filha aqui e a alergista dela do Brasil (sim! Tive que leva-la a um especialista no Brasil, senão a consulta aqui demoraria 6 meses!) acreditaram que seria importante ela ser acompanhada por especialistas na Austrália e por isso, quando tivemos algumas complicações, não me restou outra alternativa a não ser levá-la a um hospital infantil (um dos três únicos da Austrália).

Lá, depois de sermos atendidos por dois residentes, e um clínico geral (pasmem, não havia pediatra na emergência de um dos únicos hospitais infantis da Austrália!), e depois de 12 horas de espera com uma bebê de sete meses, eles resolveram interná-la para que ela fosse vista pelos especialistas e assim, conseguisse “entrar” no sistema.

Tenho que fazer um adendo agora. Médico de pronto-socorro atende o paciente e depois tem que ir fazer trabalho administrativo, escrever cartinha detalhada sobre a condição do paciente. Para vocês terem uma ideia, leva-se 15 minutos para a consulta e meia hora para escrever a cartinha, enquanto isso, a fila de pacientes e o tempo de espera só aumentam.

Chamo isso de burocracia burra (me perdoem o palavreado), mas alocar mão de obra qualificada e necessária para escrever cartinha ao invés de dar atendimento médico a quem precisa, é o fim dos tempos. Além disso, os médicos da emergência geralmente não tem autonomia para tomar nenhuma providência, então fica um tal de pega o histórico do paciente, vai discutir com o médico superior, aí vem o médico superior, você dá o histórico novamente, este médico vai discutir com outro, conclusão, depois do terceiro médico, a sua vontade é falar que está tudo bem, obrigada, ir embora e morrer em casa.

Ficamos 5 dias internados. Nos primeiros 3 dias nada aconteceu. Vocês devem estar se perguntando: “como assim nada?”.

Pois é, NADA. NADA. NADA.

Nenhuma visita médica (a não ser o pediatra uma vez ao dia dizendo em 30 segundos que o especialista ia aparecer alguma hora), nenhum exame, nenhuma medicação, enfim, nada. Foi como estar num SPA de péssima qualidade.

No terceiro dia, a coisa só começou a acontecer, porque eu tive que ir atrás dos direitos da minha filha, fiz algumas ameaças, dei um showzinho, foi aí que apareceu um médico, até dois.

Conclusão, depois de 5 dias, não fizeram nenhum exame mais minucioso, não me deram nenhum diagnóstico (a não ser o que ela já tinha desde que nasceu), ainda me informaram que 1 em cada 3 pacientes saem do hospital sem diagnóstico (como se isso fosse a coisa mais linda do mundo).

O casal com uma filha que ficou ao meu lado teve diferentes diagnósticos: sugeriram desde transplante de fígado, , a doença genética raríssima, disseram que a criança não tinha nada, eles foram liberados para ir embora duas vezes e a ambas as vezes foram buscados no corredor de saída, pois novos exames chegaram apontando coisas mais graves. Fomos embora e eles continuavam lá, sem previsão de saída e traumatizados.

Mas voltando ao ponto principal, lá em cima no texto eu citei quatro pontos importantes na problemática do sistema de saúde aqui.

A competência médica que é coisa rara. Se você tiver dor de garganta, gripe, resfriado ou dor de barriga, você vai achar os médicos da Austrália ótimos, caso seja uma coisinha mais complicada, você provavelmente vai bater na porta de muitos até ficar satisfeito (e reze para não precisar de especialista PORQUE NÃO TEM!). Resumindo: diagnóstico fácil é tranquilo. Para o restante, recomendo marcar consulta no Brasil... Ou em Portugal, na África, no Afeganistão, na Alemanha, etc... E sim, com certeza há exceções, devem existir médicos fantásticos aqui, mas eu, infelizmente, ainda não os encontrei...

A falta de acessibilidade aos serviços médicos simplesmente existe pela falta de médicos. Então às vezes é preciso implorar para entrar numa lista de espera, e mesmo assim não ter sucesso.

A burocracia dos hospitais: é médico fazendo serviço administrativo, é médico não fazendo seu serviço, é um tal de cada um vê uma coisa isolada e ninguém junta o quebra-cabeça (falta de colaboração entre especialidades), aí a pessoa passa muito mais tempo ocupando um leito, gastando dinheiro público, atrasando o funcionamento de tudo. Fora o medo de se comprometer e levar processo. Então, sem estatísticas oficiais, só observando, chuto que uns 70% dos diagnósticos hospitalares ou clínicos são de viroses! Porque quando não se sabe o que está acontecendo fica fácil jogar a culpa num vírus. E não esperem que se diga qual o vírus, pois aí já é estar pedindo demais. E com o diagnóstico de virose,  os médicos se isentam de responsabilidade e da obrigação de ter que fazer qualquer investigação mais minuciosa. Vírus é, no fim das contas, um ser muito amado por aqui.

O último ponto que eu citei: a generalidade (esse é de matar!). Como já expliquei, todo mundo é tratado por clínico geral (GP), então tudo é normal, tudo vai passar, fique tranquilo que isso é muito raro, não é o seu caso... Tudo para não ter que te encaminhar para especialista, porque afinal de contas, NÃO TEM especialista suficiente aqui.

Enfim, sei que vai ter gente que acha o sistema daqui lindo e funcional, então tudo o que escrevi aqui tem como base a MINHA experiência e a experiência de amigos que vivem aqui. Não estou pregando a minha verdade e sim dividindo a minha experiência, pois se eu tivesse intenção de vir pra cá, eu ia querer saber sobre esse outro lado da Austrália.

Na minha opinião, se a Austrália possui um defeito, o defeito é o sistema de saúde. O resto, graças a Deus, é bom.

Mas se você tem problema de saúde grave ou filhos que necessitam de cuidados maiores, eu refletiria bastante antes de embarcar nessa aventura que é morar aqui.

Não digo para não vir, pois eu estou e vou continuar aqui (no meu caso, acredito não haver necessidade de mudança agora, minha filha não tem nada de muito grave), mas aí é que entra a individualidade de cada um. Cada caso é um caso.

Então, fica aí a minha colaboração, honesta e escarrada. E bem, mas BEM resumida.

“Felicidade é boa saúde e má memória.” Ingrid Bergman

11 comentários:

  1. Recomendo médicos brasileiros irem para a Austrália.
    Bem Fernanda, só espero de coraçâo, que vocês nâo precisem mais passar por isto com a D.Júlia.

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  2. Excelente post, Fernanda, muito bom mesmo.

    Eu e a Mi nunca tivemos problemas mais sérios do que uma simples dor de garganta, então o sistema funcionou perfeitamente pra gente até agora, mas infelizmente a gente sabe que a coisa é complicada quando se tem algo mais que uma simples dor de garganta. Não é a primeira pessoa que eu vejo retratando esse tipo de coisa.

    Se me der permissão, vou querer usar seu texto no nosso blog. Com certeza será a primeira vez que vou falar algo de ruim da Austrália, mas infelizmente é a realidade.

    Mais uma vez, parabéns pelo texto e desejo que não passem mais por esse tipo de situação.

    Abraço

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  3. Voltei a seguir você. Parabéns pela filhinha.
    Beijos.

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  4. Gente ,o meu pai e japonês ,e minha mãe e brasileira .
    Eu tenho 15 anos ,e esses anos todos morei no japão.
    E gostaria muito de fazer intercâmbio na Austrália .
    E eu queria saber, como é as coisas na Austrália .
    Ou uma dica ,que pais eu devo escoler para estudar fora!!obigada..

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  5. Fernanda, você está na Austrália ainda?
    Eu estou indo embora. Tive um problema de saúde aqui e também achei ineficiente o sistema. Não senti firmeza no GP e não tive nem condições de procurar outros médicos... Depois que li seu artigo descobri que foi a melhor coisa que eu não fiz- procurar outros. Cancelei meu visa de estudante e vou me tratar no Brasil...
    Abraço e muita saúde e felicidade a você.

    Alê

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Modelo de saúde australiano (concepção e não opinião)
    Bom, não é fácil entender "Modelos de Saúde". Mas acredite, tem uma "Razão" de ser. Pode ser entendido como um trade-off (escolhas) que governo e sociedade entendem ser necessário para alocar recursos (escassos) entre todos os "benefícios sociais". A Austrália optou por um modelo baseado em forte "Atenção Primária à Saúde" e considera saúde um "Bem-social" que deve ser provido pelo Estado em parceria (regulada) com o privado. Como os recursos são de fato limitados, a sociedade , através de seus responsáveis, consideram seus “Grandes Objetivos” que serão prioritários. O fato de uma sociedade entender saúde como um bem sócia muda tudo pra frente! O Governo assume ou regula muito e tem que distribuir de forma igualitária pra todos.
    A parte “boa” do sistema: saúde coletiva com indicadores muito bons com o “Sistema” funcionando de forma eficiente (considera-se eficiente quando se consegue alcançar níveis de qualidade com custo acessível e sustentável. Por quê isso se "vida não tem preço"? Bom, simplificando é que as "contas" públicas são várias como por exemplo: infraestrutura, transporte, segurança, lazer e por aí vai... Por incrível que pareça, estas questões influenciam no estado de saúde do indivíduo (interessante observar que tudo que influi na saúde é mais difícil de ser visto mesmo (!), uma vez que investir em manutenção da saúde significa adoecer menos, mas não é tangível porque você não percebe isso, você praticamente só vê vantagem em ser saudável quando você fica doente).
    Exemplo prático: Níveis menores de depressão e doenças infecto-contagiosas, menores índices de assalto e morte violenta são bons exemplos. Estes resultados são conquistados por políticas assim. Impacto: menos doentes (doenças realmente mais comuns), menos mortalidade, menos pensão ou aposentadorias precoces, maior capacidade para o trabalho, maior produtividade, mais recurso para investimentos em políticas públicas para aumentar qualidade de vida da população.
    A parte “ruim” do sistema: De forma contrária, do ponto de vista individual as “demandas individuais” (percepções do indivíduo) nem sempre serão atendidas, (seja qual for ela)porque em países com Sistema Público eficiente e fortemente regulado pelo Governo o setor privado não têm “permissão” ou “condições” de prover de maneira satisfatória. Ou é muito caro ou você vai esperar muito. Aliás, tudo que é público quase 100% não terá condições de atender as demandas individuais. O livre mercado é bem mais eficiente!
    Resumindo: “Trade-off”

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  8. Bom saber sobre esse lado Fernanda, eu e meu marido estamos cogitando nos aventurar na Austrália, e o principal motivo para termos escolhido este país foram as oportunidades para médicos, ele é cirurgião e percebemos que não faltam oportunidades de trabalho, acho uma pena que o sistema aí funcione dessa forma e pensar que aqui no Brasil temos milhares de médicos especializados, desvalorizados e que ganham mal. Seria bom se conseguíssemos levar uns amigos junto.

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  9. Morei no Texas com fellows de varios paises
    Medicina como a do Brasil, acessivel, profissionais humanos, generosos, e a possibilidade de ir direto a um especialista- acho que nao isso em outros paises- é raro. Pena que quando estamos no Brasil nao reconhecemos nossos profissionais.

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